Olavo Hamilton
Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.
Nos processos criminais a palavra dos policiais é frequentemente vista como a principal fonte de credibilidade para a condenação de um acusado, com base em uma interpretação equivocada da fé pública. No entanto, esse peso dado ao testemunho policial é injusto e abusivo. Neste texto, analisaremos a problemática da fé pública atribuída aos policiais, o papel que o uso de câmeras corporais poderia desempenhar na formação equilibrada da prova e a necessidade de se reconhecer uma presunção relativa de veracidade ao cidadão quando o Estado deixa de adotar medidas que garantam a transparência nas abordagens policiais.
No Brasil, é comum que muitos juízes atribuam grande valor ao testemunho de policiais, considerando-o uma prova quase incontestável. Essa confiança advém do entendimento equivocado de que, por serem agentes do Estado, os policiais possuem “fé pública” também em suas declarações. No entanto, fé pública no contexto jurídico refere-se à validade e autenticidade de atos administrativos, não à credibilidade da prova testemunhal. Por isso, proferir condenação exclusivamente na palavra de policiais – sem outras provas materiais ou documentais – desconsidera princípios fundamentais do processo penal, como o in dubio pro reo e o ônus da prova, que recaem sempre sobre a acusação.
Nesse cenário, o uso de câmeras corporais seria uma solução eficaz para garantir uma prova objetiva, imparcial e confiável. As câmeras corporais permitiriam o registro audiovisual de toda a abordagem policial, assegurando que tanto as ações dos policiais quanto as reações dos cidadãos sejam documentadas. Esse registro contribuiria para que o Judiciário avaliasse com mais precisão e segurança o que de fato ocorreu, evitando decisões baseadas apenas em declarações conflitantes ou parciais. Em estados onde as câmeras corporais já foram implementadas, houve uma significativa redução de incidentes violentos e um aumento da confiança na atuação policial, devido à transparência dos registros.
Importante lembrar que, segundo o discurso oficial, a missão principal da polícia é proteger e servir a sociedade. Nesse contexto, o centro do Sistema de Justiça Criminal deve ser o cidadão, não as forças de segurança. Por isso, mais do que acreditar exclusivamente na versão policial, o Judiciário deveria ponderar também a palavra dos cidadãos, inclusive daqueles que se encontram na posição de acusados. Em uma sociedade democrática, o testemunho do cidadão deve ser examinado com a mesma seriedade que o do policial, especialmente em contextos onde a imparcialidade e a transparência se mostram essenciais para evitar injustiças.
Desse modo, sempre que uma abordagem ou operação policial não for registrada por câmeras corporais – um recurso que o Estado tem condições de instalar e utilizar –, deveria haver uma presunção relativa de veracidade da palavra do cidadão em relação à dos policiais. Se o Estado tem a possibilidade de documentar a ocorrência de maneira imparcial e transparente, mas escolhe não fazê-lo, deve arcar com as consequências de sua omissão. Esse entendimento não apenas incentivaria o uso de câmeras corporais, mas também garantiria um sistema de justiça criminal mais equilibrado, onde as evidências são tratadas com o devido rigor e as decisões judiciais se fundamentam em provas concretas, respeitando os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
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