top of page
Buscar

Polícia: controle dos pobres e defesa do capital

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


Amanhecemos com mais uma notícia de violência policial nas redes sociais. Onde? De tão comum, arrisco dizer: aí mesmo, em sua cidade. E não é de se surpreender. Trata-se apenas da polícia, sendo polícia - cumprindo sua função histórica.


Ao longo da história, a polícia desempenhou um papel fundamental na manutenção da ordem social, mas essa "ordem" sempre esteve intimamente ligada à defesa dos interesses das classes dominantes. Mais do que proteger a sociedade de crimes, a polícia historicamente se consolidou como um instrumento para estigmatizar, perseguir e punir os pobres, regulando suas condutas e confinando-os às margens da sociedade. Este texto explora como o surgimento das forças policiais modernas, a partir do século XIX, está profundamente enraizado na necessidade de proteger a propriedade privada e assegurar a estabilidade do sistema capitalista, revelando a função primordial da polícia como guardiã de um status quo que privilegia os interesses econômicos de uma elite.




A emergência das forças policiais modernas coincide com o período de consolidação das cidades industriais e o crescimento acelerado das populações urbanas no século XIX. Com a urbanização, os trabalhadores passaram a se concentrar em bairros superlotados e sem infraestrutura, o que gerou temores de insurreição e agitação social entre as elites. Diante desse cenário, a polícia foi criada não como resposta ao aumento de crimes violentos, mas sim como uma estratégia para supervisionar, vigiar e conter esses segmentos sociais considerados "perigosos". Ou seja, desde o início, a polícia serviu como um mecanismo de controle social mais do que uma instituição para combater a criminalidade propriamente dita.


Além disso, a criminalização de comportamentos comuns entre os pobres, como o vadiagem, a mendicância e a ocupação de espaços públicos, foi uma ferramenta crucial para reforçar a divisão social. A polícia não só reprimia esses atos, mas também atuava na criação de um estigma em torno dos mais pobres, associando a imagem de pobreza à criminalidade e à falta de valor social. Essa construção ideológica sustentava a visão de que a pobreza era uma ameaça à ordem e, portanto, legitimava o uso de violência e coerção para "disciplinar" esses corpos. Ao mesmo tempo, essa retórica mascarava a verdadeira função da polícia: assegurar que a classe trabalhadora se mantivesse submissa e disponível para o mercado de trabalho — por pouco dinheiro, sem questionar o sistema econômico que a explorava.


Nesse contexto, a perseguição sistemática de comunidades vulneráveis revela que a ação policial nunca foi neutra. Grupos como os trabalhadores sem-teto, mulheres, população lgbtqia+, as minorias raciais e os jovens das periferias são alvos preferenciais de abordagens truculentas e políticas repressivas. Esse padrão de conduta não é acidental, parte de uma lógica de contenção social que visa proteger os interesses do capital e impedir que a pobreza se torne visível nas áreas centrais das cidades, onde reside a elite econômica. Em última análise, a polícia atua como uma linha de defesa da propriedade privada e da tranquilidade burguesa, mantendo a desigualdade social sob controle. A medida do rigor do sistema de justiça criminal e da truculência da polícia é a medida da desigualdade presente. Por isso mesmo, quanto mais desigual é a sociedade, mais necessários se fazem os presídios.


Essa é justamente uma das teses mais importantes do filósofo Michel Foucault, de que o crime e a punição desempenham um papel econômico no exercício do poder. Ao regular a criminalidade e selecionar certos tipos de crimes e criminosos para perseguição, o sistema de justiça cria uma classe de "delinquentes" que podem ser utilizados como instrumentos para outras formas de controle social. Esse grupo de "delinquentes" acaba sendo funcional para a manutenção de certas estruturas sociais, econômicas e políticas.


Dessa forma, a análise histórica e crítica da função da polícia demonstra que sua atuação vai muito além de "proteger e servir". Suas raízes estão entrelaçadas com a necessidade de controlar as massas e manter as estruturas de poder econômico intactas. Ao identificar essa dinâmica, é possível questionar os limites e propósitos da polícia na sociedade atual e abrir um debate sobre o papel das instituições de segurança pública em um contexto de crescente desigualdade social e econômica. Afinal, até que ponto a segurança que a polícia diz promover beneficia a população como um todo — ou se restringe a proteger os privilégios de alguns?

Commentaires


bottom of page