Olavo Hamilton
Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.
Fugir do cárcere nem sempre deve ser classificado como falta grave, principalmente em circunstâncias específicas, como no contexto do estado de necessidade para proteção da própria segurança e das condições inconstitucionais das unidades prisionais brasileiras. A definição da fuga como falta grave deve ser revista para evitar que a aplicação da norma desconsidere princípios fundamentais, dignidade da pessoa humana em especial, e situações extremas de degradação no sistema prisional, reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Esse enfoque visa contribuir para uma interpretação garantista do direito penal, ponderando as condições em que a conduta do detento se origina.
A Lei de Execução Penal classifica a fuga como falta grave, resultando em consequências severas para o detento, que pode levar à perda de benefícios, como a remição de pena e regressão de seu cumprimento para o regime fechado. Essa norma tem como objetivo declarado manter a disciplina e o controle no sistema penitenciário, inibindo (ao menos no discurso) a prática da fuga e preservando a segurança das unidades prisionais.
No entanto, em situações de risco iminente à integridade física do detento, a fuga pode ser justificada pelo estado de necessidade, previsto no artigo 24 do Código Penal. Esse dispositivo legal assegura que, em situações onde o indivíduo age para proteger um bem jurídico essencial, como sua vida, integridade física ou segurança, a conduta deixa de ser ilícita. Dessa forma, o detento que foge para escapar de uma ameaça concreta, como a violência entre facções, ações de represália ou negligência grave das autoridades prisionais, não pode ser visto como alguém que deliberadamente quebra as regras do sistema. Nessas situações, a fuga é uma reação necessária e não uma afronta voluntária às normas disciplinares, devendo ser ponderada à luz da necessidade legítima de autopreservação.
O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo STF (ADPF 347) no sistema prisional brasileiro, em 2015, trouxe uma nova perspectiva sobre o tema. Nessa decisão histórica, o STF declarou que as condições das unidades prisionais brasileiras violam sistematicamente os direitos fundamentais dos detentos, revelando um quadro generalizado de violência institucional. A superlotação, a falta de higiene, a insuficiência de alimentação e o descumprimento das mínimas condições de segurança e saúde são realidades frequentes, configuram graves transgressões aos direitos humanos e, por isso, um estado de coisas inconstitucional. Essa situação evidencia uma falha estrutural das políticas públicas e da atuação estatal, que não conseguem oferecer condições mínimas de cumprimento de pena conforme os ditames da Constituição.
Diante desse contexto de degradação, classificar a fuga de um detento como falta grave ignora o ambiente inconstitucional a que ele está submetido. A fuga, nesse cenário, torna-se uma reação compreensível e justificada, e não um ato de indisciplina. O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, estabelece que todos, incluindo os apenados, têm direito a um tratamento digno. A permanência em um ambiente degradante viola esse princípio, obrigando o Estado a garantir, minimamente, a integridade e os direitos do indivíduo em regime de privação de liberdade. Assim, punir o detento que foge dessas condições como se fosse um infrator disciplinar comum desconsidera o papel do Estado e as violações às quais o preso é submetido.
Asssim, "a fuga [seria] um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão" sentenciou o Ministro Marco Aurelio ao julgar recurso em habeas corpus no STF (RHC: 84851 BA, 01/03/2005, Primeira Turma). Nessa linha, o STF afirmou que a fuga de um detento não justifica automaticamente a perda de direitos.
É importante ressaltar que não se defende aqui um direito positivo à fuga, mas uma interpretação que leve em conta as circunstâncias das quais decorre a evasão. Em situações de ameaça à segurança do preso ou diante de condições inconstitucionais no sistema penitenciário, a fuga pode ser vista como um ato inevitável e justificado. Desconsiderar o caráter excepcional dessas situações e classificar automaticamente a fuga como falta grave representa uma aplicação rígida e descontextualizada da lei, que ignora a complexidade do sistema penal e os princípios constitucionais que deveriam guiar a execução penal no Brasil.
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