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Publicações

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pela Lei 13.964/2019, é um instituto voltado à resolução consensual de infrações penais de menor gravidade, oferecendo uma alternativa ao processo penal tradicional. Embora teoricamente previsto para ser aplicado antes do trânsito em julgado, a possibilidade de sua realização mesmo após a sentença condenatória definitiva deve ser defendida com base em princípios fundamentais do direito, como a retroatividade da lei penal mais benéfica, a proporcionalidade e a isonomia. Este texto explora os fundamentos jurídicos que sustentam a aplicação do ANPP após o trânsito em julgado, garantindo tratamento equitativo a réus em situações semelhantes.




Princípio da Retroatividade da Lei Penal Mais Benéfica


A Constituição Federal, em seu art. 5º, XL, consagra o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Isso significa que, sempre que uma nova norma for mais favorável ao réu, deve ser aplicada, mesmo que a condenação já tenha transitado em julgado. Nesse contexto, o ANPP, ao proporcionar ao réu uma solução menos gravosa, deve ser considerado uma norma penal mais benéfica.


A vedação ao ANPP após o trânsito em julgado contrariaria esse princípio, pois negaria ao condenado o acesso a um instrumento mais benéfico que visa promover a pacificação e a reparação de danos, sem a necessidade de cumprimento da pena imposta. Assim, o ANPP deve ser visto como aplicável não apenas em fases pré-condenatórias, mas também como meio alternativo às condenações das quais não se pode mais recorrer.


Princípio da Proporcionalidade


Outro princípio que fundamenta a aplicação do ANPP após o trânsito em julgado é o da proporcionalidade. Esse princípio exige que as sanções aplicadas aos indivíduos sejam proporcionais à gravidade do crime cometido. O ANPP, ao permitir alternativas ao encarceramento, oferece uma resposta mais adequada para crimes de menor gravidade, como é o caso dos delitos que se enquadram nos requisitos legais para o acordo.


A negativa de acesso ao ANPP após o trânsito em julgado perpetuaria situações em que réus são obrigados a cumprir penas desproporcionais - porque desnecessárias, uma vez que se enquadrariam nas possibilidades teóricas e objetivas de não persecução penal. Ou seja, se há um instrumento alternativo, menos gravoso, que cumpre os critérios oficiais de ressocialização e reparação, é desproporcional negá-lo a pretexto da coisa julgada em matéria penal.


Princípio da Isonomia


O princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, é essencial na discussão sobre a aplicação do ANPP após o trânsito em julgado. Este princípio impõe que indivíduos em situações idênticas sejam tratados de maneira igual pelo ordenamento jurídico. No caso do ANPP, permitir que apenas réus que ainda não foram condenados possam celebrá-lo gera um tratamento desigual entre condenados por crimes idênticos.


Ao impedir o ANPP para condenados cujas sentenças já transitaram em julgado, cria-se uma diferenciação injustificável, baseada apenas no momento processual, o que viola o princípio da igualdade. Crimes de mesma natureza, envolvendo réus em condições semelhantes, não podem ser tratados de maneira desigual simplesmente porque de uma condenação não cabe mais recurso.


Considerações Finais


A aplicação do ANPP após o trânsito em julgado é uma medida que respeita os princípios constitucionais da retroatividade da lei penal mais benéfica, proporcionalidade e isonomia. Negar essa possibilidade perpetua a desigualdade no tratamento de réus e impede a adaptação do sistema penal às evoluções legislativas que visam à eficiência e à justiça. Portanto, a realização do ANPP mesmo após o trânsito em julgado é não apenas juridicamente possível, mas também necessária para garantir equidade e justiça no tratamento penal.

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


A proposta de desmilitarização da polícia e, especificamente, a extinção da Polícia Militar, é um tema de intenso debate no Brasil, com argumentos que apontam para um modelo de segurança pública mais eficiente, democrático e atento aos direitos humanos. O atual modelo de policiamento militarizado é inadequado para o contexto metropolitano, contribui para a violência policial e se mostra ineficaz no combate à criminalidade. A mudança para uma polícia de caráter civil, com foco na mediação de conflitos e na proximidade com a comunidade, poderia melhorar a confiança pública e diminuir os altos índices de letalidade que atualmente marcam a atuação da PM.



O modelo de polícia militar no Brasil possui raízes históricas que remontam ao período colonial e à ditadura militar, quando foi concebido com uma finalidade eminentemente repressiva. Esse legado autoritário reflete-se em práticas violentas que tratam parcelas vulneráveis da população como inimigos a serem combatidos, ao invés de cidadãos a serem protegidos. No entanto, no contexto de uma democracia, a lógica de guerra é incompatível com as funções de segurança pública, que devem priorizar a preservação da vida e a proteção dos direitos fundamentais.


Não fosse o bastante, a estrutura rígida e hierarquizada da Polícia Militar impede o desenvolvimento de uma cultura de policiamento com prioridade na mediação de conflitos e no respeito aos direitos humanos. Em vez disso, predomina um treinamento voltado ao enfrentamento e ao uso excessivo da força, o que resulta em altos índices de letalidade e em episódios recorrentes de abusos de autoridade. Tais práticas reforçam a desconfiança da população, especialmente nas comunidades mais vulneráveis, onde a presença da PM é frequentemente associada à violência e à repressão - sobretudo contra pessoas pretas, pobres e periféricas.


Um dos maiores problemas do modelo militar é a falta de mecanismos de controle e transparência. A dificuldade de investigar e punir adequadamente violações de direitos por parte de policiais militares é exacerbada pela estrutura fechada e autorreferente da corporação. Isso impede que cidadãos e instituições civis exerçam efetivo controle sobre as ações da polícia, resultando em um quadro de impunidade que mina a credibilidade do sistema de segurança pública.


Adicionalmente, a utilização da Polícia Militar como força repressiva em protestos e manifestações populares é um sintoma do descompasso entre a sua lógica operacional e os valores democráticos. Quando a Polícia Militar é chamada para intervir em eventos de natureza política, muitas vezes emprega táticas de confronto que desrespeitam o direito constitucional de manifestação, tratando ativistas como inimigos internos a serem contidos.


Nesse sentido, a proposta de desmilitarização não é meramente simbólica, mas representa uma mudança estrutural necessária para que se construa um modelo de segurança pública verdadeiramente comprometido com a promoção da paz social. Ao substituir a Polícia Militar por uma força de caráter civil, mais integrada à comunidade e capacitada para lidar com os desafios cotidianos de segurança pública, o Brasil daria um passo importante na construção de um sistema que não veja o cidadão como ameaça, mas como parceiro na promoção de um ambiente seguro e pacífico.


Em síntese, o fim da Polícia Militar é uma oportunidade para reformar profundamente o sistema de segurança pública, trazendo-o para mais perto dos valores democráticos e garantindo que a proteção de todos os cidadãos seja a prioridade. A criação de uma polícia civil unificada, com treinamento voltado à mediação e à proteção de direitos, é um caminho necessário para diminuir a violência policial, aumentar a confiança pública e transformar o Brasil em um país mais seguro e justo.

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


Amanhecemos com mais uma notícia de violência policial nas redes sociais. Onde? De tão comum, arrisco dizer: aí mesmo, em sua cidade. E não é de se surpreender. Trata-se apenas da polícia, sendo polícia - cumprindo sua função histórica.


Ao longo da história, a polícia desempenhou um papel fundamental na manutenção da ordem social, mas essa "ordem" sempre esteve intimamente ligada à defesa dos interesses das classes dominantes. Mais do que proteger a sociedade de crimes, a polícia historicamente se consolidou como um instrumento para estigmatizar, perseguir e punir os pobres, regulando suas condutas e confinando-os às margens da sociedade. Este texto explora como o surgimento das forças policiais modernas, a partir do século XIX, está profundamente enraizado na necessidade de proteger a propriedade privada e assegurar a estabilidade do sistema capitalista, revelando a função primordial da polícia como guardiã de um status quo que privilegia os interesses econômicos de uma elite.




A emergência das forças policiais modernas coincide com o período de consolidação das cidades industriais e o crescimento acelerado das populações urbanas no século XIX. Com a urbanização, os trabalhadores passaram a se concentrar em bairros superlotados e sem infraestrutura, o que gerou temores de insurreição e agitação social entre as elites. Diante desse cenário, a polícia foi criada não como resposta ao aumento de crimes violentos, mas sim como uma estratégia para supervisionar, vigiar e conter esses segmentos sociais considerados "perigosos". Ou seja, desde o início, a polícia serviu como um mecanismo de controle social mais do que uma instituição para combater a criminalidade propriamente dita.


Além disso, a criminalização de comportamentos comuns entre os pobres, como o vadiagem, a mendicância e a ocupação de espaços públicos, foi uma ferramenta crucial para reforçar a divisão social. A polícia não só reprimia esses atos, mas também atuava na criação de um estigma em torno dos mais pobres, associando a imagem de pobreza à criminalidade e à falta de valor social. Essa construção ideológica sustentava a visão de que a pobreza era uma ameaça à ordem e, portanto, legitimava o uso de violência e coerção para "disciplinar" esses corpos. Ao mesmo tempo, essa retórica mascarava a verdadeira função da polícia: assegurar que a classe trabalhadora se mantivesse submissa e disponível para o mercado de trabalho — por pouco dinheiro, sem questionar o sistema econômico que a explorava.


Nesse contexto, a perseguição sistemática de comunidades vulneráveis revela que a ação policial nunca foi neutra. Grupos como os trabalhadores sem-teto, mulheres, população lgbtqia+, as minorias raciais e os jovens das periferias são alvos preferenciais de abordagens truculentas e políticas repressivas. Esse padrão de conduta não é acidental, parte de uma lógica de contenção social que visa proteger os interesses do capital e impedir que a pobreza se torne visível nas áreas centrais das cidades, onde reside a elite econômica. Em última análise, a polícia atua como uma linha de defesa da propriedade privada e da tranquilidade burguesa, mantendo a desigualdade social sob controle. A medida do rigor do sistema de justiça criminal e da truculência da polícia é a medida da desigualdade presente. Por isso mesmo, quanto mais desigual é a sociedade, mais necessários se fazem os presídios.


Essa é justamente uma das teses mais importantes do filósofo Michel Foucault, de que o crime e a punição desempenham um papel econômico no exercício do poder. Ao regular a criminalidade e selecionar certos tipos de crimes e criminosos para perseguição, o sistema de justiça cria uma classe de "delinquentes" que podem ser utilizados como instrumentos para outras formas de controle social. Esse grupo de "delinquentes" acaba sendo funcional para a manutenção de certas estruturas sociais, econômicas e políticas.


Dessa forma, a análise histórica e crítica da função da polícia demonstra que sua atuação vai muito além de "proteger e servir". Suas raízes estão entrelaçadas com a necessidade de controlar as massas e manter as estruturas de poder econômico intactas. Ao identificar essa dinâmica, é possível questionar os limites e propósitos da polícia na sociedade atual e abrir um debate sobre o papel das instituições de segurança pública em um contexto de crescente desigualdade social e econômica. Afinal, até que ponto a segurança que a polícia diz promover beneficia a população como um todo — ou se restringe a proteger os privilégios de alguns?

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