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  • há 2 dias
  • 3 min de leitura

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB (2019-2025), Professor e Escritor.


A história talvez registre Jorge Mario Bergoglio não apenas como o primeiro Papa latino-americano, mas como um dos poucos Pontífices que ousaram pensar além dos muros do Vaticano — e, quase sempre, apesar deles. Francisco é, mais que pastor, um Político com "P" maiúsculo: entendeu que a política, como disse Bismarck, é a "arte do possível" — e que soube atuar com coragem, sem perder o senso da realidade institucional.



Ao assumir o papado em 2013, vindo "do fim do mundo", como ele mesmo disse, Francisco trouxe consigo o peso das periferias globais, das favelas de Buenos Aires, da experiência pastoral nas margens sociais e existenciais. E foi a partir dessas margens que lançou as críticas mais contundentes ao centro do poder econômico, à cultura do descarte e à desigualdade planetária - o que lhe rendeu, dentro e fora da Cúria, a alcunha nada elogiosa de "Papa Comunista". O certo é que seu pontificado foi, em muitos sentidos, uma voz contra a indiferença.


Os avanços: uma "Igreja em saída", mais próxima dos pobres


Francisco conseguiu arejar o discurso e a prática da Igreja em diversos campos:


  • Ecologia integral: com a encíclica Laudato Si’ (2015), tornou-se uma das principais vozes globais em defesa do meio ambiente, denunciando a destruição da “Casa Comum” e a lógica extrativista do capital.

  • Pobres no centro: revalorizou a opção preferencial pelos pobres, propondo uma Igreja “em saída”, missionária, menos preocupada com estruturas e mais com presença.

  • Reformas institucionais: promoveu mudanças significativas na Cúria Romana e incentivou práticas de transparência financeira, enfrentando resistências internas históricas.

  • Diálogo inter-religioso e acolhimento: demonstrou abertura ao diálogo com outras religiões e com não crentes. Defendeu migrantes, refugiados e marginalizados, confrontando políticas nacionalistas e xenófobas.

  • Moral sexual com mais misericórdia: ainda que sem alterar a doutrina, adotou um tom menos condenatório em relação a temas como homossexualidade, divórcio e convivência antes do matrimônio, abrindo espaço para a escuta e a compaixão.


As resistências e os limites: o possível diante do impossível


Mas Francisco também encontrou os limites do que é possível — mesmo com toda sua autoridade papal. Alguns pontos revelam isso:


  • Ordenação de mulheres: apesar de pressões de diversos setores, especialmente da América Latina e Europa, Francisco manteve a negativa quanto à ordenação feminina, restringindo-se a criar comissões de estudo e admitir a possibilidade do diaconato feminino.

  • Celibato clerical: a expectativa de mudanças, especialmente com o Sínodo da Amazônia, foi frustrada. A ordenação de homens casados permaneceu um tabu.

  • Questões de gênero e LGBTQIA+: embora tenha dito “quem sou eu para julgar?” sobre pessoas homossexuais e promovido acolhimento pastoral, Francisco não avançou na aceitação plena dessas identidades nos sacramentos ou na doutrina moral da Igreja.

  • Reforma real da Cúria e do poder clerical: apesar de avanços administrativos, o peso do clericalismo e das resistências internas ao Vaticano permanece significativo. Reformar a estrutura de poder da Igreja é, talvez, o mais difícil dos combates.


Revolucionário ou Semeador?


Francisco não foi um revolucionário no sentido clássico. Ele foi algo mais complexo e, talvez, mais duradouro: um reformista paciente, que compreendeu que, na Igreja, cada gesto simbólico pode conter o germe de uma mudança profunda. É pouco para quem desejava tudo? Talvez. Mas é muito, para quem sabe como funcionam os corredores de Roma.


Seu legado não está apenas nas reformas que implementou, mas na mentalidade que inaugurou: uma Igreja que escuta, caminha junto e se inquieta diante da dor do mundo. Um Papa político, no melhor e mais nobre dos sentidos.


Francisco foi um semeador. Se suas ideias darão frutos, o tempo dirá. A chave para enterder o futuro da Igreja está em Mateus, capítulo 13. Temo que Francisco tenha semeado suas ideias no "meio de pedras" sem terra para criar raízes e que sequem aos primeiros raios de Sol (versículos 5 e 6), mas torço que o Vaticano seja como "terra boa" (versículo 8) e que o legado de Francisco avance exponencialmente. Amém.


  • há 3 dias
  • 2 min de leitura

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB (2019-2025), Professor e Escritor.


“Na guerra o mais inocente é o favelado de fuzil russo”.


Essa frase, trecho da música "Hoje Deus anda de blindado" da banda Facção Central, não é apenas uma metáfora potente — é uma acusação direta à hipocrisia de uma sociedade que escolhe quem deve viver e quem pode morrer; um retrato fiel da necropolítica, teoria/denúncia de Achille Mbembe. A afirmação é uma linha que rasga o silêncio confortável de quem observa a periferia de longe, julgando, punindo e enterrando corpos, sem nunca questionar as raízes da violência.



Facção Central não canta para agradar. Canta para denunciar. Seus versos incomodam a consciência. E, nessa canção, a banda resume décadas de exclusão social, racismo estrutural, abandono estatal e seletividade penal em apenas uma sentença.


O "favelado de fuzil russo" é, muitas vezes, o produto final de um sistema que falhou — ou, pior, que funcionou exatamente como foi projetado: para excluir, para controlar, para eliminar. Pensou em Foucault? Quando se afirma ser o mais inocente, não se trata de uma absolvição moral simplista. É um convite à reflexão: quem colocou esse jovem naquela guerra? Quem lucra com ela? Quem lhe negou todas as outras alternativas?


Enquanto o Estado se omite na educação, no saneamento, na saúde e no emprego, se faz presente com o caveirão, com a bala "achada", com a prisão. A guerra é real. Mas os inimigos não são iguais. Um porta um fuzil, o outro carrega uma caneta que assina cortes de orçamento, medidas de austeridade, recrudescimento do Sistema de Justiça Criminal, operações letais em comunidades. Já a sociedade exercita o "silêncio dos justos" que aterrorizava Martin Luther King por ser muito mais danoso que o "grito dos maus".


A crítica da Facção Central não é panfleto. É testemunho. É voz de quem viu de perto o enterro precoce de amigos, o cotidiano da repressão, o racismo institucional elevado à categoria política de segurança pública. É a arte denunciando que a guerra urbana tem lados — um é o da miséria extrema, o outro é o da manutenção de um sistema cuja lógica se alimenta do trabalho mal remunerado e da estigmatização das pessoas pobres.


No Brasil, onde a juventude negra e periférica é exterminada sem alarde, essa frase se impõe como um manifesto: não se combate desigualdade com helicóptero blindado. Não se pacifica uma comunidade com silenciadores. Não se constrói justiça com cova rasa.


“Na guerra, o mais inocente é o favelado de fuzil russo”. E talvez a parte mais cruel disso tudo seja que essa realidade alimenta os nossos privilégios - nossos, de quem escreveu e de quem está lendo.





  • 10 de nov. de 2024
  • 2 min de leitura

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


A frase “ainda há juízes em Berlim” tornou-se um símbolo poderoso de confiança no sistema de justiça, evocando a ideia de que o poder judiciário pode proteger os direitos dos cidadãos, mesmo diante de governantes autoritários. Essa expressão, de origem alemã, carrega uma história interessante e ressoa até hoje como um lembrete da importância de um sistema judicial independente para combater abusos de poder.




A expressão remonta ao século XVIII, durante o reinado de Frederico II, o Grande, na Prússia. A história gira em torno de um simples moleiro chamado Arnold, cujo moinho ficava próximo a uma das propriedades do rei, o palácio Sanssouci em Postdam, nos arredores de Berlim. Frederico teria se incomodado com o barulho e a estética do moinho e, por isso, exigido que Arnold o vendesse ou o fechasse. Confiante em seus direitos, o moleiro recusou-se, afirmando que o moinho estava ali antes da construção do palácio real. Frederico, então, teria ameaçado confiscar a propriedade, mas Arnold, seguro de que a justiça prevaleceria, respondeu: “Ainda há juízes em Berlim!”.


Essa resposta reflete a crença de Arnold de que o sistema de justiça da Prússia – mesmo que parte do Estado – se manteria imparcial, defendendo o cidadão comum contra o arbítrio do rei. A expressão “ainda há juízes em Berlim” logo se tornou um símbolo da confiança popular de que, por mais que o poder de um governante possa ser vasto, ele não é absoluto; há um limite imposto pelo direito e pela justiça. Rei e peão teriam o mesmo valor e importância diante de um judiciário justo e imparcial, pois o juiz não se encontra no tabuleiro do xadrez.


No contexto atual, essa expressão é especialmente relevante. O papel do poder judiciário como guardião dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais continua a ser essencial. Embora os tempos tenham mudado, ainda há situações em que cidadãos se encontram diante de poderes que, em diferentes escalas, buscam atuar com arbitrariedade ou abuso de autoridade. Nessas horas, o judiciário deve agir como um baluarte de proteção, lembrando-nos de que ninguém está acima da lei.


Esse episódio do moleiro e o rei também nos ensina que a confiança pública no poder judiciário é essencial para uma sociedade democrática e para o fortalecimento dos direitos humanos. Se há confiança de que “ainda há juízes em Berlim” – ou seja, que ainda há juízes justos e independentes –, as pessoas se sentirão seguras ao buscar reparação e proteção de seus direitos, sabendo que serão ouvidas e julgadas com imparcialidade.


A frase serve como um lembrete de que a justiça deve ser acessível e imparcial, funcionando como uma garantia contra toda forma de arbítrio e injustiça. Em tempos de incerteza e abuso de poder, "ainda há juízes em Berlim" ecoa como uma promessa de que a justiça pode, e deve, prevalecer. Em tempo: séculos se passaram e o moinho segue em pé, como se desafiasse a imponência e a beleza de Sanssouci. Que metáfora!

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