O Mais Inocente na Guerra
- Olavo Hamilton
- 20 de abr.
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Olavo Hamilton
Advogado, Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB (2019-2025), Professor e Escritor.
“Na guerra o mais inocente é o favelado de fuzil russo”.
Essa frase, trecho da música "Hoje Deus anda de blindado" da banda Facção Central, não é apenas uma metáfora potente — é uma acusação direta à hipocrisia de uma sociedade que escolhe quem deve viver e quem pode morrer; um retrato fiel da necropolítica, teoria/denúncia de Achille Mbembe. A afirmação é uma linha que rasga o silêncio confortável de quem observa a periferia de longe, julgando, punindo e enterrando corpos, sem nunca questionar as raízes da violência.

Facção Central não canta para agradar. Canta para denunciar. Seus versos incomodam a consciência. E, nessa canção, a banda resume décadas de exclusão social, racismo estrutural, abandono estatal e seletividade penal em apenas uma sentença.
O "favelado de fuzil russo" é, muitas vezes, o produto final de um sistema que falhou — ou, pior, que funcionou exatamente como foi projetado: para excluir, para controlar, para eliminar. Pensou em Foucault? Quando se afirma ser o mais inocente, não se trata de uma absolvição moral simplista. É um convite à reflexão: quem colocou esse jovem naquela guerra? Quem lucra com ela? Quem lhe negou todas as outras alternativas?
Enquanto o Estado se omite na educação, no saneamento, na saúde e no emprego, se faz presente com o caveirão, com a bala "achada", com a prisão. A guerra é real. Mas os inimigos não são iguais. Um porta um fuzil, o outro carrega uma caneta que assina cortes de orçamento, medidas de austeridade, recrudescimento do Sistema de Justiça Criminal, operações letais em comunidades. Já a sociedade exercita o "silêncio dos justos" que aterrorizava Martin Luther King por ser muito mais danoso que o "grito dos maus".
A crítica da Facção Central não é panfleto. É testemunho. É voz de quem viu de perto o enterro precoce de amigos, o cotidiano da repressão, o racismo institucional elevado à categoria política de segurança pública. É a arte denunciando que a guerra urbana tem lados — um é o da miséria extrema, o outro é o da manutenção de um sistema cuja lógica se alimenta do trabalho mal remunerado e da estigmatização das pessoas pobres.
No Brasil, onde a juventude negra e periférica é exterminada sem alarde, essa frase se impõe como um manifesto: não se combate desigualdade com helicóptero blindado. Não se pacifica uma comunidade com silenciadores. Não se constrói justiça com cova rasa.
“Na guerra, o mais inocente é o favelado de fuzil russo”. E talvez a parte mais cruel disso tudo seja que essa realidade alimenta os nossos privilégios - nossos, de quem escreveu e de quem está lendo.