top of page
Publicações
  • 7 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


A proposta de desmilitarização da polícia e, especificamente, a extinção da Polícia Militar, é um tema de intenso debate no Brasil, com argumentos que apontam para um modelo de segurança pública mais eficiente, democrático e atento aos direitos humanos. O atual modelo de policiamento militarizado é inadequado para o contexto metropolitano, contribui para a violência policial e se mostra ineficaz no combate à criminalidade. A mudança para uma polícia de caráter civil, com foco na mediação de conflitos e na proximidade com a comunidade, poderia melhorar a confiança pública e diminuir os altos índices de letalidade que atualmente marcam a atuação da PM.


ree

O modelo de polícia militar no Brasil possui raízes históricas que remontam ao período colonial e à ditadura militar, quando foi concebido com uma finalidade eminentemente repressiva. Esse legado autoritário reflete-se em práticas violentas que tratam parcelas vulneráveis da população como inimigos a serem combatidos, ao invés de cidadãos a serem protegidos. No entanto, no contexto de uma democracia, a lógica de guerra é incompatível com as funções de segurança pública, que devem priorizar a preservação da vida e a proteção dos direitos fundamentais.


Não fosse o bastante, a estrutura rígida e hierarquizada da Polícia Militar impede o desenvolvimento de uma cultura de policiamento com prioridade na mediação de conflitos e no respeito aos direitos humanos. Em vez disso, predomina um treinamento voltado ao enfrentamento e ao uso excessivo da força, o que resulta em altos índices de letalidade e em episódios recorrentes de abusos de autoridade. Tais práticas reforçam a desconfiança da população, especialmente nas comunidades mais vulneráveis, onde a presença da PM é frequentemente associada à violência e à repressão - sobretudo contra pessoas pretas, pobres e periféricas.


Um dos maiores problemas do modelo militar é a falta de mecanismos de controle e transparência. A dificuldade de investigar e punir adequadamente violações de direitos por parte de policiais militares é exacerbada pela estrutura fechada e autorreferente da corporação. Isso impede que cidadãos e instituições civis exerçam efetivo controle sobre as ações da polícia, resultando em um quadro de impunidade que mina a credibilidade do sistema de segurança pública.


Adicionalmente, a utilização da Polícia Militar como força repressiva em protestos e manifestações populares é um sintoma do descompasso entre a sua lógica operacional e os valores democráticos. Quando a Polícia Militar é chamada para intervir em eventos de natureza política, muitas vezes emprega táticas de confronto que desrespeitam o direito constitucional de manifestação, tratando ativistas como inimigos internos a serem contidos.


Nesse sentido, a proposta de desmilitarização não é meramente simbólica, mas representa uma mudança estrutural necessária para que se construa um modelo de segurança pública verdadeiramente comprometido com a promoção da paz social. Ao substituir a Polícia Militar por uma força de caráter civil, mais integrada à comunidade e capacitada para lidar com os desafios cotidianos de segurança pública, o Brasil daria um passo importante na construção de um sistema que não veja o cidadão como ameaça, mas como parceiro na promoção de um ambiente seguro e pacífico.


Em síntese, o fim da Polícia Militar é uma oportunidade para reformar profundamente o sistema de segurança pública, trazendo-o para mais perto dos valores democráticos e garantindo que a proteção de todos os cidadãos seja a prioridade. A criação de uma polícia civil unificada, com treinamento voltado à mediação e à proteção de direitos, é um caminho necessário para diminuir a violência policial, aumentar a confiança pública e transformar o Brasil em um país mais seguro e justo.

  • 5 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Olavo Hamilton

Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.


Amanhecemos com mais uma notícia de violência policial nas redes sociais. Onde? De tão comum, arrisco dizer: aí mesmo, em sua cidade. E não é de se surpreender. Trata-se apenas da polícia, sendo polícia - cumprindo sua função histórica.


Ao longo da história, a polícia desempenhou um papel fundamental na manutenção da ordem social, mas essa "ordem" sempre esteve intimamente ligada à defesa dos interesses das classes dominantes. Mais do que proteger a sociedade de crimes, a polícia historicamente se consolidou como um instrumento para estigmatizar, perseguir e punir os pobres, regulando suas condutas e confinando-os às margens da sociedade. Este texto explora como o surgimento das forças policiais modernas, a partir do século XIX, está profundamente enraizado na necessidade de proteger a propriedade privada e assegurar a estabilidade do sistema capitalista, revelando a função primordial da polícia como guardiã de um status quo que privilegia os interesses econômicos de uma elite.



ree

A emergência das forças policiais modernas coincide com o período de consolidação das cidades industriais e o crescimento acelerado das populações urbanas no século XIX. Com a urbanização, os trabalhadores passaram a se concentrar em bairros superlotados e sem infraestrutura, o que gerou temores de insurreição e agitação social entre as elites. Diante desse cenário, a polícia foi criada não como resposta ao aumento de crimes violentos, mas sim como uma estratégia para supervisionar, vigiar e conter esses segmentos sociais considerados "perigosos". Ou seja, desde o início, a polícia serviu como um mecanismo de controle social mais do que uma instituição para combater a criminalidade propriamente dita.


Além disso, a criminalização de comportamentos comuns entre os pobres, como o vadiagem, a mendicância e a ocupação de espaços públicos, foi uma ferramenta crucial para reforçar a divisão social. A polícia não só reprimia esses atos, mas também atuava na criação de um estigma em torno dos mais pobres, associando a imagem de pobreza à criminalidade e à falta de valor social. Essa construção ideológica sustentava a visão de que a pobreza era uma ameaça à ordem e, portanto, legitimava o uso de violência e coerção para "disciplinar" esses corpos. Ao mesmo tempo, essa retórica mascarava a verdadeira função da polícia: assegurar que a classe trabalhadora se mantivesse submissa e disponível para o mercado de trabalho — por pouco dinheiro, sem questionar o sistema econômico que a explorava.


Nesse contexto, a perseguição sistemática de comunidades vulneráveis revela que a ação policial nunca foi neutra. Grupos como os trabalhadores sem-teto, mulheres, população lgbtqia+, as minorias raciais e os jovens das periferias são alvos preferenciais de abordagens truculentas e políticas repressivas. Esse padrão de conduta não é acidental, parte de uma lógica de contenção social que visa proteger os interesses do capital e impedir que a pobreza se torne visível nas áreas centrais das cidades, onde reside a elite econômica. Em última análise, a polícia atua como uma linha de defesa da propriedade privada e da tranquilidade burguesa, mantendo a desigualdade social sob controle. A medida do rigor do sistema de justiça criminal e da truculência da polícia é a medida da desigualdade presente. Por isso mesmo, quanto mais desigual é a sociedade, mais necessários se fazem os presídios.


Essa é justamente uma das teses mais importantes do filósofo Michel Foucault, de que o crime e a punição desempenham um papel econômico no exercício do poder. Ao regular a criminalidade e selecionar certos tipos de crimes e criminosos para perseguição, o sistema de justiça cria uma classe de "delinquentes" que podem ser utilizados como instrumentos para outras formas de controle social. Esse grupo de "delinquentes" acaba sendo funcional para a manutenção de certas estruturas sociais, econômicas e políticas.


Dessa forma, a análise histórica e crítica da função da polícia demonstra que sua atuação vai muito além de "proteger e servir". Suas raízes estão entrelaçadas com a necessidade de controlar as massas e manter as estruturas de poder econômico intactas. Ao identificar essa dinâmica, é possível questionar os limites e propósitos da polícia na sociedade atual e abrir um debate sobre o papel das instituições de segurança pública em um contexto de crescente desigualdade social e econômica. Afinal, até que ponto a segurança que a polícia diz promover beneficia a população como um todo — ou se restringe a proteger os privilégios de alguns?

Pedro Hamilton

Advogado. Graduado em Direito pela UERN.



No julgamento do RE 1.235.340 (Tema 1.068), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria, que a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução da pena imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada. A tese se fundamenta na premissa de que, uma vez reconhecida a culpa pelo Júri, não há necessidade de aguardar o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena, mesmo que o condenado ainda possa recorrer da decisão​.  Entretanto, nem tudo está perdido! Apesar de autorizar a execução imediada da pena, a decisão do STF não obriga necessariamente que o acusado seja preso logo após a condenação pelo Júri Popular. Entendo haver espaço para, no caso concreto, possibilitar ao réu recorrer da sentença em liberdade. Este texto buscará analisar o entendimento adotado pelo STF, expondo sua contrariedade ao princípio constitucional da presunção de inocência, e a sua inadequação frente a uma lógica mais garantista da persecução penal.



ree

A interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal viola o princípio da presunção de inocência, que deve ser compreendido como um sobreprincípio do Direito Processual Criminal, orientando todas as fases da persecução penal. A presunção de inocência não é apenas uma garantia do acusado de ser tratado como inocente, mas sim um pilar que assegura o equilíbrio e a justiça do processo penal. Esse sobreprincípio impõe que a privação de liberdade somente ocorra após um juízo de certeza sobre a culpa dos acusados, refletida no esgotamento dos recursos, evitando que o Estado exerça seu poder punitivo de forma precipitada e injusta.


A Constituição de 1988 é clara ao definir que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória​.  No caso em apreço, a decisão proferida pelo corpo de jurados não implica no trânsito em julgado da sentença. Em que pese serem soberanas as decisões do Tribunal do Júri, ainda cabe ao réu se defender de inúmeras maneiras em sede recursal.  O acusado condenado pelo júri popular pode, entre outras situações:


  • sustentar que o julgamento foi manifestadamente contrário à prova dos autos;

  • arguir nulidade no processo posterior à pronúncia;

  • requerer a diminuição da pena e, por conseguinte, a alteração do regime inicial de cumprimento, nas hipóteses de erro na dosimetria da pena;

  • a exclusão de alguma agravante ou qualificadora incompatível com o caso concreto;

  • demonstrar contrariedade na sentença à lei expressa ou à decisão dos jurados.


Em suma, a condenação pelo Tribunal do Júri não impede que a sentença seja reformada por meio de recurso. A decisão do STF ao permitir a execução imediata da pena após a condenação pelo Tribunal do Júri subverte essa lógica constitucional, ao tratar uma sentença ainda sujeita a revisão como se fosse definitiva. Ao permitir que a pena seja cumprida antes do esgotamento das vias recursais e do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o STF cria um regime de exceção dentro do sistema penal, incompatível com a presunção de inocência – artigo 5º, LVII da Constituição Federal.


Além disso, a tese adotada pelo STF também afronta os princípios da proporcionalidade e da isonomia, criando um regime diferenciado e mais severo para os condenados pelo Tribunal do Júri em comparação aos demais réus condenados por juízes togados, que têm o direito de aguardar o trânsito em julgado para o início da execução da pena. Essa diferenciação não se justifica, pois o direito penal brasileiro deve assegurar um tratamento igualitário e proporcional a todos os acusados, independentemente do órgão julgador.


Contudo, a decisão do STF apenas autoriza a imediata execução da condenação imposta pelo corpo de jurados, permitindo ao acusado pleitear, no caso concreto, o direito de recorrer em liberdade, passando ao cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado da sentença. 


Portanto, a tese do RE 1.235.340, ao afastar a presunção de inocência, prioriza um viés punitivista em detrimento das garantias processuais constitucionais, contrariando a estrutura garantista que deveria orientar o sistema de justiça criminal brasileiro, mas não exclui por completo a possibilidade do acusado recorrer da condenação em liberdade.

bottom of page